Crónica de Alexandre Honrado
Pagar portagem à inteligência
Apesar das habilitações ditas, talvez por ironia, literárias ou académicas, a verdade é que aquela rapariga não passa de uma cepa muito torta que se senta todos os dias na mesma pequena caixa metálica, a receber outras coisas metálicas, moedas, moedas de condutores anónimos, mal encarados, mal educados, ensonados, indiferentes, coitados. Condutores que pagam a portagem de uma forma direta, moeda a moeda, praguejando contra os aumentos e a vida. Ela, a rapariga da portagem, com outra vida parecida, mas se calhar menos vivida, suspira, estende a mão, às vezes sem grande êxito. Sente uma dor tremenda no braço, de fazer o gesto repetidas vezes durante todo o dia, se tivesse tempo e consulta perguntava ao médico se era aquilo a tal tendinite de que tanto ouve falar, ela sabe que a sua pobre e magra profissão mal paga está ameaçada e prefere aguentar enquanto puder, não vá ser atirada para a valeta da sorte ou do azar. As máquinas, essas, agora ditam tudo. Querem ser não só o seu braço curto como o seu cérebro cansado, cada vez menos povoado de ideias. Porque tem daquele tipo de profissões em que sobra pouco espaço para pensar, não vá um engano atirá-la borda fora. Ouviu falar remotamente de uma coisa chamada inteligência artificial. E parece até que mais do que remotamente hoje há muita gente a escolher o tema, à falta de melhor, para discorrer sobre o que sabe e o que não sabe sobre essa aparente ameaça, mais antiga do que se julga, mas tão atual e motivadora como o starlink da SpaceX a passar por cima da cabeça de uma humanidade desnorteada. São modas passageiras? São ameaças antigas? Que essas sim, não passam de moda, fazem a própria moda. Se eu for a falar com franqueza, verdade se diga, tenho de dar graças a essa inteligência artificial, já que, com um braço partido, escrevo este texto sem o escrever, escrevo-o só com a voz. Isto é, dito-o para um processador de texto que, simpaticamente, faz o que meu braço faria antes: “escreve”. Sei que a minha profissão está ameaçada, tal como a rapariga da portagem sabe que o futuro que a espera pode ser vazio e sem perspetivas. Sei que inteligência artificial quer tirar de frente o cérebro, os criativos., a criatividade. Negar o trabalho aos que ainda pensam. Nada melhor do que um robô, um computador que sabe escrever livros, filmes, séries de tv, cartas de amor… para substituírem alguns best-sellers que andam por aí e que já parecem produto de uma qualquer inteligência muito artificial.
A rapariga da portagem tem comigo poucas coisas em comum? Ambos nos debatemos, porém, com a dinâmica das novas realidades. Ela estende os braços para moedas que não são suas. Eu estendo os braços para moedas que acho serem minhas por direito. E à minha volta muitas, muitas mãos, cada vez mais mãos estendem-se, pedindo moedas a quem ainda as terá.
É um tema que agora, por falta de tempo, não vou desenvolver, mas que prometo agarrar com mais do que unhas e dentes, este da inteligência artificial, o mito do século 21. Nós que também andamos órfãos de mitos, mas que pensamos se elas inteligências artificiais que andam por aí serão as nossas. Escravas do futuro. Amigos dispostos a tudo? Mestres que nos ensinaram a viver a vida que andamos a perder? Virá brevemente um algoritmo capaz de reinventar a moral? Será que uma máquina pode ser assim tão consciente? Como o homem poderia ser, se apostasse tudo na consciência?
Há um rosto novo na paisagem. Não veio do mundo natural. Mas é uma dessas aberrações que o mundo cultural de vez em quando consegue produzir? Digo bom dia à rapariga da portagem. Não faço ideia se ela me ouve. O barulho das moedas é sempre mais forte do que nós.
Alexandre Honrado
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